Comparado com o cineasta americano, Jeferson De acaba de finalizar M8 - Quando a morte socorre a vida, com Lázaro Ramos e Zezé Motta
Revista TRIP
Para além da trama, o novo trabalho de Jeferson se propõe a tratar de questões que, para o diretor, são fundamentais. “O filme gera debates, que é tudo o que precisamos hoje. As pessoas podem exibir muitas certezas, mas o filme mostra que sempre sobra algum espaço pra incerteza e esse é o ponto de reflexão.”
Esse “retrato do Brasil em seu coração”, como ele define, é ambientado na periferia carioca: “O Rio de Janeiro deveria ter se transformado depois da Copa, mas deu tudo errado, na minha visão. Também tem a questão da intervenção militar, pela qual fomos contaminados durante as gravações na Rocinha, em junho deste ano”, comenta.
A ideia foi criar um microcosmo para discutir temas urgentes no país como cotas, racismo e desigualdade de oportunidades, sem cair em estereótipos que aparecem com frequência quando se retratam pessoas negras no cinema. “É a história de um estudante de medicina negro, cotista, que precisa estudar três cadáveres de pessoas também negras na faculdade”, conta. “A maioria dos negros no Brasil não é bandido, jogador de futebol e nem sambista”, enfatiza o diretor. Atrás das câmeras, a produção conta com maioria de profissionais negros, como Cristiano Conceição, que assina a direção de fotografia. “É um grande artista que percebe a luz brasileira na pele negra”, elogia o diretor.
Primos distantes
Jeferson De é comparado pela crítica e pelos colegas de trabalho ao diretor norte-americano Spike Lee, cineasta que conquistou projeção mundial com filmes sobre os guetos norte-americanos. “Eu não gosto não [risos]. A maneira como nós, negros, somos tratados no Brasil é muito diferente. Aqui, se admite o racismo e ninguém assume que é racista. Nos Estados Unidos, o branco é branco, o preto é preto, o judeu é judeu, o recorte é preciso. Aqui se fala que o cara é ‘meio preto’, ou ‘mulato’, o que denota uma certa bagunça, uma busca de identidade”, reflete.
Spike Lee, 61 anos, acaba de lançar seu novo filme, Infiltrado na Klan, que conta a história verídica de um policial negro que, nos anos 70, se infiltrou entre os seguidores da Ku Klux Klan, organização que defende a supremacia branca. Para Jeferson, grande admirador de Spike Lee, o filme é uma reflexão sobre o momento atual dos Estados Unidos e do mundo. “O cineasta sempre é um profeta. Ele discute a ideia de supremacia branca, que voltou a ser notícia recentemente. Você acha que tá vendo uma ficção mas é a realidade norte-americana.”
Além de se inspirar na forma como o norte-americano retrata a cultura urbana, Jeferson se empolga com o que considera uma nova fase do cinema negro, que vem com produções como Moonlight (2016), vencedor do Oscar de melhor filme em 2017, e Corra! (2017). “Moonlight, por exemplo, é um filme sobre um homem negro, homossexual e traficante. Nós, brasileiros, jamais o produziríamos como um filme comercial, que pudesse ganhar um Oscar. É um filme sobre sensibilidades que precisamos ter como referência.”

Cinema feijoada
A história do cineasta paulista com o cinema começa na infância. “Meu pai era uma espécie de líder comunitário da região rural de Taubaté e sempre buscava um projecionista de outra cidade para exibir filmes numa quadra de futebol de salão. Eu acompanhava todo o processo”, relembra.
Fascinado pelo o que acontecia nos bastidores das projeções, ele tentava imaginar a mágica que fazia com que os personagens saíssem das latas com rolos de filme para o lençol branco usado como tela, como uma versão tropical do clássico Cinema Paradiso, filme franco-italiano lançado na década de 80. “Quando vi esse filme, pensei ‘pô, eu vivi isso!’”, se empolga o diretor.
A paixão o levou para o curso de cinema da USP (hoje chamado de audiovisual), em que se percebeu num universo elitizado, sendo o único estudante negro da turma. “A universidade era um lugar de embate para mim. Ali, eu fiz uma pesquisa sobre cinematografia negra e lancei o Dogma feijoada, que é um manifesto em prol do cinema negro no Brasil, nos anos 2000, época em que falar sobre protagonismo negro não era algo tão óbvio”, explica.
O Dogma feijoada foi criado num dia em que Jeferson estava comendo feijoada com um amigo. Eles comentavam sobre o Dogma 95, manifesto criado na mesma época pelo diretor Lars von Trier, que propunha caminhos para o cinema dinamarquês. “Ele sugeriu que meu estudo sobre cinematografia negra podia ter um cunho mais popular. No cinema negro, a gente faz filme com os restos, não com as partes nobres, assim como a feijoada era feita pelos negros escravizados. Trazemos personagens e histórias que foram deixados de lado”, explica.

O protagonismo de pessoas negras no cinema, seja na frente, seja atrás das câmeras, caminha a passos lentos e é fruto de uma luta histórica: “O Dogma feijoada, por exemplo, só foi possível porque existem cineastas como Adélia Sampaio [primeira mulher negra a dirigir um longa no Brasil] ocupando esse espaço.” Por isso, Jeferson De trabalha para que as narrativas sobre o Brasil sejam mais diversas, em todos os sentidos. “A assinatura da Princesa Isabel, celebrada por ter instituído a Lei Áurea, serviu para apagar toda a trajetória de luta dos meus antepassados. É fundamental que a gente tenha a consciência de que tudo o que está acontecendo hoje é fruto dessa luta”, lembra, em um pensamento que explica a importância do tipo de cinema que busca fazer.
Um levantamento da Ancine deste ano (o primeiro elaborado com recorte racial no Brasil) revelou que apenas 2% dos diretores de cinema brasileiros são negros, número que não passa de 1% em relação às mulheres negras. “Quando a gente pensa em cineasta brasileiro, pensa num cara branco, hétero, de família rica, de São Paulo ou do Rio de Janeiro. E essas pessoas fazem filmes para falar sobre o que é o povo brasileiro. Nós também queremos contar nossa versão da história e colaborar com outras visões sobre o Brasil”, sentencia.
Reportagem perfeita. Faltou apenas citar a gaúcha Camila de Moraes, diretora do documentário O Caso do Homem Errado, premiado no Uruguai e que está na lista de indicados a representar o Brasil no Oscar!
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